Tradutora: Daniela Belmiro
Editora: Leya
Edição de: 2018
Páginas: 336
12ª leitura de 2020
Vencedores do Prêmio Pulitzer
*Lido no Kindle Unlimited
Sinopse: Um livro eletrizante, importante e perturbador, Falsa acusação é baseado numa história real e num artigo vencedor do Prêmio Pulitzer de jornalismo investigativo, que foi publicado no site de uma ONG na internet e viralizou em questão de horas. Como num episódio de Law & Order, os jornalistas T. Christian Miller e Ken Armstrong acompanham o trabalho incansável e a dedicação de duas detetives para colocar um estuprador em série na cadeia e dar voz às suas vítimas – fazendo também uma análise da maneira ultrajante como as mulheres são tratadas quando denunciam casos de violência sexual.
Eu não sei, realmente não sei, como falar deste livro. De um livro que já tem lugar entre os meus favoritos do ano (e da vida) e que me deixou tão destroçada. Com uma sensação de vazio, de revolta, de medo... de injustiça. Sei que há justiça no final (se trata de uma história real, então, não venham falar que é spoiler, por favor!), mas não para todas. Muitas e muitas vítimas de estupro nunca conseguem a justiça merecida. Nunca. E ver tudo isso neste livro acabou comigo. Minhas emoções estão uma bagunça só e me sinto realmente muito mal. Já não tenho nem mais forças para chorar.
Antes de tudo, ressalto que se trata de uma história real. E que existem inúmeros "gatilhos". Neste livro, através do brilhante trabalho de dois jornalistas, que resolveram levar a público a história dessas vítimas e de toda a investigação (e a falta dela) para pegar o estuprador, conheceremos de modo bastante próximo do leitor, as mulheres que foram atacadas por Marc O'Leary, um pouco de suas vidas e de todo o terror que viveram. E mais: os jornalistas se dedicaram ainda a mostrar as raízes históricas das falhas ocorridas nas investigações em Washington, que remontam à "ensinamentos" deixados por um juiz que viveu no século XVII, que foi responsável inclusive pela execução de mulheres julgadas e condenadas por serem "bruxas". É incrível como um passado tão distante pode ainda provocar consequências tantos séculos depois... E como o trabalho para conscientizar a população e capacitar investigadores e autoridades envolvidas no julgamento de crimes sexuais é contínuo, não pode parar. Quanto mais pessoas trabalham em prol das vítimas, dos seus direitos, mais e mais pessoas precisam continuar, é algo que nunca chegará ao fim. Porque ainda existe muito machismo e ceticismo, muita gente que prefere duvidar ou culpar as vítimas.
Marie estava apenas começando a sua vida adulta, cheia de medos e inseguranças, mas também de muita esperança. Sua vida não tinha sido fácil. Vítima de abusos na infância, foi separada dos irmãos ainda muito pequena, passando por diversos lares adotivos, nunca permanecendo muito tempo em lugar algum, nunca tendo a oportunidade de criar laços. E assim foi por toda infância e adolescência. Mal começava numa escola precisava ser transferida para outra, pois mudaria de pais adotivos.... novamente. Nunca se preocupavam em lhe explicar os motivos, ela tinha apenas que obedecer e se conformar.
Mas agora, com dezoito anos, tudo seria diferente. Ela tinha sido beneficiada com um programa que ajudava jovens a ingressarem na vida adulta, pagando o aluguel deles até que conseguissem se estabilizar. Ela tinha seu próprio apartamento, estava começando no seu primeiro emprego e tinha tirado a carteira de motorista para aprendiz, logo teria a definitiva. Tudo estava indo bem. Tinha vários amigos, frequentava a Igreja, e era relativamente próxima das duas últimas mães adotivas que tivera. Não imaginava nada que pudesse dar errado.
Foi em agosto de 2008 que todo o pesadelo começou. Ela tinha ficado toda a madrugada acordada conversando com um de seus melhores amigos, que anteriormente tinha sido seu namorado. Eles eram muito próximos e gostavam de conversar por horas, sem perceberem o tempo passar. Já era quase de manhã quando ela finalmente se deitou para dormir... apenas para ser acordada por um estranho em seu quarto. Durante o tempo que durou o estupro, enquanto era ameaçada com uma faca e estava amarrada e amordaçada, Marie viveu um terror sem fim, imaginando se quando terminasse aquele homem acabaria também com a sua vida. Todavia, ao terminar ele foi embora. Sem que a casa tivesse sido arrombada. Sem que Marie tivesse conseguido ver seu rosto. Desesperada, ela ligou para as pessoas mais próximas. A polícia foi chamada. As investigações para pegar o estuprador começaram... ou não?
Marie foi submetida a exames íntimos e desgastantes. Que duraram horas. Que abalaram ainda mais o seu emocional. Mas tudo aquilo era necessário, pois o kit de estupro era essencial para auxiliar nas investigações e na justiça para a vítima. As roupas que ela vestia na ocasião também, bem como os lençóis da cama e outros objetos que tivessem sido tocados pelo criminoso (que estava usando luvas). Tudo foi recolhido, etiquetado, separado para que todo o procedimento fosse feito da maneira correta. Mas não demorou nada para que as coisas começassem a desandar.
Os investigadores responsáveis pelo caso duvidaram. Os amigos de Marie também. Até mesmo suas duas mães adotivas, que a conheciam, que viveram com ela. Os orientadores do programa que subsidiava seu aluguel também tiveram dúvidas e as expressaram. Em síntese, boa parte das pessoas que estavam ao redor de Marie preferiram acreditar que ela estava mentindo.
Dispostos a provarem que Marie estava mentindo, que toda a "história de estupro" tinha sido invenção da sua parte para chamar a atenção das pessoas, os investigadores passaram a tratá-la como criminosa. Fragilizada pelo terror que tinha vivido, Marie sofreu um choque terrível quando um dos investigadores lhe contou que uma de suas mães adotivas (com a concordância da outra), bem como o seu melhor amigo (com quem ela ficou conversando por telefone naquela noite) procuraram a polícia para dizer que não acreditavam nela, que tinham quase certeza que ela tinha inventado tudo.
O golpe foi muito forte. Certeiro. Desestabilizada, pressionada pela polícia que não a deixava em paz, insistindo de maneira cada vez mais ameaçadora que ela deveria "contar a verdade", e dizer que tudo tinha sido inventado, Marie voltou atrás. Ela só queria que tudo terminasse. Só queria que aquele pesadelo chegasse ao fim. Não era possível que tudo aquilo estivesse realmente acontecendo.
Ela foi obrigada a assinar um documento no qual "confessava" que tinha inventado o estupro. Logo em seguida, transtornada por saber que realmente tinha sido estuprada e que tudo aquilo estava errado demais, ela voltou à delegacia para insistir que não tinha mentido, que tinha sido estuprada, que tudo o que contara era verdade. Ela inclusive disse que aceitaria se submeter ao teste do polígrafo, ao detector de mentiras, para provar que estava falando a verdade. E o resultado foram mais ameaças: neste dia, os policiais chegaram ao ponto de dizer que iriam mandá-la para a cadeia. Marie não teve opção senão se calar. E mesmo assim, poucas semanas depois, recebeu em sua casa uma correspondência lhe informando que estava sendo processada por "falsa comunicação de crime". Ou seja, mesmo depois de forçá-la a voltar atrás, a "Justiça" do seu Estado não estava satisfeita: não só não investigariam e prenderiam seu estuprador, mas também a processariam por ter comunicado o estupro.
Poucos meses depois do estupro de Marie, uma senhora foi atacada a poucos quilômetros dali. Existiam muitas semelhanças entre os dois casos e mesmo informados disso, os policiais das duas regiões se recusaram a investigar e "ligar" os dois casos.
Anos mais tarde, duas dedicadas detetives se desdobrariam para pegar um estuprador em série, que se tornaria cada vez mais agressivo com o passar do tempo. Através de uma investigação competente, com o auxílio de diversos especialistas dispostos a acreditarem nas vítimas e fazerem o seu trabalho, elas descobririam quem era o estuprador e o prenderiam. Essas detetives não teriam conhecimento da história de Marie... não até um momento crucial. Extremamente chocadas com todos os erros cometidos pelos responsáveis pela investigação do caso de Marie, que não só tinha sido desacreditada, mas também processada e condenada, elas trabalhariam para corrigir uma enorme injustiça.
Tempos depois, dois jornalistas dispostos a investigarem falhas cometidas em investigações envolvendo crimes de estupro, tomariam conhecimento da história de Marie, de todos os erros cometidos no caso dela, bem como do trabalho das detetives que prenderam o estuprador em série. Eles decidiriam tornar esses casos públicos. Daí surgiria este livro.
É desesperador ler sobre o inferno que Marie viveu. Não é fácil ler tudo o que está escrito neste livro. Não é fácil saber que tudo foi real. Que aos dezoito anos de idade, após ter tido uma vida tão complicada, e mesmo assim nunca tendo desanimado, ela passou por um pesadelo como esse, sendo violentada não só pelo estuprador, mas pelo próprio sistema judiciário, que a agrediu de uma maneira ainda pior. Que destruiu a sua vida. Porque quando a polícia a tachou de mentirosa e o judiciário a processou, Marie passou a sofrer todo tipo de ameaça e acusação. Perdeu seus amigos, seu emprego, suas mães adotivas já não a queriam mais por perto, as pessoas das quais antes ela era próxima a olhavam com ódio, como se ela fosse um monstro. Todos os seus sonhos foram assassinados. E seu emocional ficou em ruínas. A depressão tomou conta, o medo intenso, a sensação de que nada nunca mais daria certo, que tudo tinha chegado ao fim.
Eu senti um ódio tão grande! Do estuprador, claro que sim, mas sobretudo dos investigadores e do sistema judiciário daquele lugar. Marie era uma vítima e foi tratada como criminosa, desacreditada, ameaçada, coagida. Foi processada!!! Correu risco de ser presa. Perdeu tudo o que tinha porque foi estuprada e a justiça não quis acreditar nela. O que foi recolhido da cena do crime, até mesmo o kit de estupro, foi descartado. E por causa da incompetência deles mais estupros aconteceram. Porque essa é uma realidade inegável: se eles tivessem feito o seu trabalho, se tantos erros grotescos não tivessem sido cometidos em relação ao caso de Marie, as chances de que o estuprador tivesse sido pego antes eram grandes. Todo o trabalho que as detetives do Colorado tiveram, deveria ter sido feito pelos de Washington.
Além do caso de Marie, acompanhamos também as vítimas posteriores, estupradas pelo mesmo monstro. Algumas delas ficaram com seus casos parados por não terem sido encontradas pistas que levassem até o criminoso, mas diferentemente de Marie, deram a sorte de encontrar policiais que seguiram o procedimento e mesmo quando se viram diante de dúvidas, não deixaram de cumprir seu trabalho. Por conta disso, quando as detetives Stacy Galbraith e Edna Hendershot se uniram para fazer todo o possível para conectar seus casos e rastrear outros casos semelhantes que as levassem até o estuprador, essas vítimas foram incluídas entre as mulheres estupradas por ele. Como o caso de Marie foi classificado como "falsa comunicação de crime" e os investigadores descartaram tudo como se estupro nenhum tivesse sido cometido, essas detetives só descobriram a existência dela ao final da investigação, por conta de arquivos encontrados na casa do estuprador. Se não fosse por isso, Marie nunca teria encontrado justiça. Seria para sempre considerada uma mentirosa. Nunca teria conseguido recuperar a sua vida.
Os jornalistas que trabalharam para trazer a público esses casos, expondo todas as falhas policiais, bem como a dedicação de duas detetives que fizeram toda a diferença (juntamente com uma equipe maravilhosa), merecem todo nosso respeito e admiração. É um livro brilhante, uma pesquisa incrível, porque eles foram além, buscaram outros casos semelhantes aos de Marie, nos quais mulheres foram desacreditadas, processadas e até mesmo presas por comunicarem que foram estupradas e terem suas vozes caladas, condenadas no lugar dos agressores. São muitos os casos mencionados pelos jornalistas, muitas as situações, até mesmo envolvendo vítimas adolescentes que, como Marie, perderam muitíssimo ao serem tachadas como mentirosas. É angustiante demais ler sobre essas mulheres, saber que são pessoas reais, que passaram por toda essa dor, sendo agredidas pelo estuprador, pelo Estado e pela sociedade.
Os autores falam também do trabalho de muitas pessoas e ONGs para tornar mais humano o tratamento dado às vítimas de crimes sexuais, das conquistas que já foram obtidas e do longo caminho que ainda precisa ser percorrido. Há, inclusive, uma menção à minha querida Mariska Hargitay (atriz que interpreta Olivia Benson na série de TV Lei e Ordem - Unidade de Vítimas Especiais) e seu trabalho na defesa das vítimas de agressões sexuais na vida real. É um livro muito completo, construído com base num jornalismo investigativo muito bem feito, contando com entrevistas a muitos dos envolvidos no caso de Marie e das outras vítimas do mesmo estuprador. Há até o ponto de vista do estuprador, o que nos deixa ainda mais abalados. É um livro que merece muitos prêmios e que levarei como um dos meus preferidos de toda a vida.
Tudo que falei aqui ainda é pouco. É necessário ler o livro para compreender o quanto ele é importante. É UM LIVRO QUE DEVERIA SER LIDO POR TODOS.
Fazer esta resenha foi muito difícil. Uma das resenhas mais difíceis da minha vida. Existem várias outras coisas que gostaria de mencionar, mas ainda estou muito angustiada com tudo que li. Ainda me sinto muito mal. Imaginei que nem conseguiria escrever até aqui, mas precisava pelo menos tentar. Não teria sossego se não fizesse a resenha deste livro. Vocês precisam conhecê-lo. Precisam mesmo. Leiam! Simplesmente leiam este livro!
-> DLL 20: Um livro baseado em fatos
Atualizado em 18/03/2020, às 17h20min.
Eu tinha esquecido de mencionar que este livro inspirou a série da Netflix, intitulada Inacreditável. Ainda não assisti a série, então, não tenho como falar sobre ela. Não sei o quanto é fiel ao livro, mas pelos comentários de algumas pessoas parece que a série manteve sim a essência desta história real.
Antes de tudo, ressalto que se trata de uma história real. E que existem inúmeros "gatilhos". Neste livro, através do brilhante trabalho de dois jornalistas, que resolveram levar a público a história dessas vítimas e de toda a investigação (e a falta dela) para pegar o estuprador, conheceremos de modo bastante próximo do leitor, as mulheres que foram atacadas por Marc O'Leary, um pouco de suas vidas e de todo o terror que viveram. E mais: os jornalistas se dedicaram ainda a mostrar as raízes históricas das falhas ocorridas nas investigações em Washington, que remontam à "ensinamentos" deixados por um juiz que viveu no século XVII, que foi responsável inclusive pela execução de mulheres julgadas e condenadas por serem "bruxas". É incrível como um passado tão distante pode ainda provocar consequências tantos séculos depois... E como o trabalho para conscientizar a população e capacitar investigadores e autoridades envolvidas no julgamento de crimes sexuais é contínuo, não pode parar. Quanto mais pessoas trabalham em prol das vítimas, dos seus direitos, mais e mais pessoas precisam continuar, é algo que nunca chegará ao fim. Porque ainda existe muito machismo e ceticismo, muita gente que prefere duvidar ou culpar as vítimas.
"Nas investigações de agressões sexuais, muitas vezes a credibilidade da vítima é tão debatida quanto a do acusado."
Marie estava apenas começando a sua vida adulta, cheia de medos e inseguranças, mas também de muita esperança. Sua vida não tinha sido fácil. Vítima de abusos na infância, foi separada dos irmãos ainda muito pequena, passando por diversos lares adotivos, nunca permanecendo muito tempo em lugar algum, nunca tendo a oportunidade de criar laços. E assim foi por toda infância e adolescência. Mal começava numa escola precisava ser transferida para outra, pois mudaria de pais adotivos.... novamente. Nunca se preocupavam em lhe explicar os motivos, ela tinha apenas que obedecer e se conformar.
Mas agora, com dezoito anos, tudo seria diferente. Ela tinha sido beneficiada com um programa que ajudava jovens a ingressarem na vida adulta, pagando o aluguel deles até que conseguissem se estabilizar. Ela tinha seu próprio apartamento, estava começando no seu primeiro emprego e tinha tirado a carteira de motorista para aprendiz, logo teria a definitiva. Tudo estava indo bem. Tinha vários amigos, frequentava a Igreja, e era relativamente próxima das duas últimas mães adotivas que tivera. Não imaginava nada que pudesse dar errado.
"O homem a deixou apavorada. Ele ia machucá-la. Estava disposto a matá-la."
Foi em agosto de 2008 que todo o pesadelo começou. Ela tinha ficado toda a madrugada acordada conversando com um de seus melhores amigos, que anteriormente tinha sido seu namorado. Eles eram muito próximos e gostavam de conversar por horas, sem perceberem o tempo passar. Já era quase de manhã quando ela finalmente se deitou para dormir... apenas para ser acordada por um estranho em seu quarto. Durante o tempo que durou o estupro, enquanto era ameaçada com uma faca e estava amarrada e amordaçada, Marie viveu um terror sem fim, imaginando se quando terminasse aquele homem acabaria também com a sua vida. Todavia, ao terminar ele foi embora. Sem que a casa tivesse sido arrombada. Sem que Marie tivesse conseguido ver seu rosto. Desesperada, ela ligou para as pessoas mais próximas. A polícia foi chamada. As investigações para pegar o estuprador começaram... ou não?
"A maior parte das vítimas de estupro nunca faz a denúncia. Marie fez. 'Para que ninguém mais acabasse sofrendo', ela disse. 'Porque, se eu denunciasse, eles iam atrás da pessoa que tinha feito aquilo comigo'."
Marie foi submetida a exames íntimos e desgastantes. Que duraram horas. Que abalaram ainda mais o seu emocional. Mas tudo aquilo era necessário, pois o kit de estupro era essencial para auxiliar nas investigações e na justiça para a vítima. As roupas que ela vestia na ocasião também, bem como os lençóis da cama e outros objetos que tivessem sido tocados pelo criminoso (que estava usando luvas). Tudo foi recolhido, etiquetado, separado para que todo o procedimento fosse feito da maneira correta. Mas não demorou nada para que as coisas começassem a desandar.
Os investigadores responsáveis pelo caso duvidaram. Os amigos de Marie também. Até mesmo suas duas mães adotivas, que a conheciam, que viveram com ela. Os orientadores do programa que subsidiava seu aluguel também tiveram dúvidas e as expressaram. Em síntese, boa parte das pessoas que estavam ao redor de Marie preferiram acreditar que ela estava mentindo.
"Submeter a vítima a interrogatórios é um procedimento 'completamente inadequado'."
Dispostos a provarem que Marie estava mentindo, que toda a "história de estupro" tinha sido invenção da sua parte para chamar a atenção das pessoas, os investigadores passaram a tratá-la como criminosa. Fragilizada pelo terror que tinha vivido, Marie sofreu um choque terrível quando um dos investigadores lhe contou que uma de suas mães adotivas (com a concordância da outra), bem como o seu melhor amigo (com quem ela ficou conversando por telefone naquela noite) procuraram a polícia para dizer que não acreditavam nela, que tinham quase certeza que ela tinha inventado tudo.
O golpe foi muito forte. Certeiro. Desestabilizada, pressionada pela polícia que não a deixava em paz, insistindo de maneira cada vez mais ameaçadora que ela deveria "contar a verdade", e dizer que tudo tinha sido inventado, Marie voltou atrás. Ela só queria que tudo terminasse. Só queria que aquele pesadelo chegasse ao fim. Não era possível que tudo aquilo estivesse realmente acontecendo.
Ela foi obrigada a assinar um documento no qual "confessava" que tinha inventado o estupro. Logo em seguida, transtornada por saber que realmente tinha sido estuprada e que tudo aquilo estava errado demais, ela voltou à delegacia para insistir que não tinha mentido, que tinha sido estuprada, que tudo o que contara era verdade. Ela inclusive disse que aceitaria se submeter ao teste do polígrafo, ao detector de mentiras, para provar que estava falando a verdade. E o resultado foram mais ameaças: neste dia, os policiais chegaram ao ponto de dizer que iriam mandá-la para a cadeia. Marie não teve opção senão se calar. E mesmo assim, poucas semanas depois, recebeu em sua casa uma correspondência lhe informando que estava sendo processada por "falsa comunicação de crime". Ou seja, mesmo depois de forçá-la a voltar atrás, a "Justiça" do seu Estado não estava satisfeita: não só não investigariam e prenderiam seu estuprador, mas também a processariam por ter comunicado o estupro.
"Não tinha existido qualquer complicação para que a polícia formalizasse a acusação contra Marie - nenhuma reavaliação obrigatória da conduta adotada na delegacia, nenhum termo de aprovação assinado por um promotor de justiça. O sargento Mason havia preenchdio e assinado ele mesmo o termo de infração. Fora uma decisão pessoal dele acusar Marie - e uma decisão bem fácil de ser tomada."
Poucos meses depois do estupro de Marie, uma senhora foi atacada a poucos quilômetros dali. Existiam muitas semelhanças entre os dois casos e mesmo informados disso, os policiais das duas regiões se recusaram a investigar e "ligar" os dois casos.
Anos mais tarde, duas dedicadas detetives se desdobrariam para pegar um estuprador em série, que se tornaria cada vez mais agressivo com o passar do tempo. Através de uma investigação competente, com o auxílio de diversos especialistas dispostos a acreditarem nas vítimas e fazerem o seu trabalho, elas descobririam quem era o estuprador e o prenderiam. Essas detetives não teriam conhecimento da história de Marie... não até um momento crucial. Extremamente chocadas com todos os erros cometidos pelos responsáveis pela investigação do caso de Marie, que não só tinha sido desacreditada, mas também processada e condenada, elas trabalhariam para corrigir uma enorme injustiça.
Tempos depois, dois jornalistas dispostos a investigarem falhas cometidas em investigações envolvendo crimes de estupro, tomariam conhecimento da história de Marie, de todos os erros cometidos no caso dela, bem como do trabalho das detetives que prenderam o estuprador em série. Eles decidiriam tornar esses casos públicos. Daí surgiria este livro.
"Queríamos examinar o caso de Marie à luz de um contexto nacional, a fim de mostrar que, por mais terrível que tenha sido o calvário dessa jovem, existem outras vítimas que passam basicamente pela mesma situação. E assim surgiu este livro."
É desesperador ler sobre o inferno que Marie viveu. Não é fácil ler tudo o que está escrito neste livro. Não é fácil saber que tudo foi real. Que aos dezoito anos de idade, após ter tido uma vida tão complicada, e mesmo assim nunca tendo desanimado, ela passou por um pesadelo como esse, sendo violentada não só pelo estuprador, mas pelo próprio sistema judiciário, que a agrediu de uma maneira ainda pior. Que destruiu a sua vida. Porque quando a polícia a tachou de mentirosa e o judiciário a processou, Marie passou a sofrer todo tipo de ameaça e acusação. Perdeu seus amigos, seu emprego, suas mães adotivas já não a queriam mais por perto, as pessoas das quais antes ela era próxima a olhavam com ódio, como se ela fosse um monstro. Todos os seus sonhos foram assassinados. E seu emocional ficou em ruínas. A depressão tomou conta, o medo intenso, a sensação de que nada nunca mais daria certo, que tudo tinha chegado ao fim.
"No que diz respeito às denúncias de estupro, o universo judiciário incorporou 'o arraigado pressuposto masculino de que as pessoas do sexo feminino tendem a mentir', como escreveu Susan Brownmiller. Em tribunais por todo o território dos Estados Unidos, o padrão histórico tem sido já começar duvidando."
Eu senti um ódio tão grande! Do estuprador, claro que sim, mas sobretudo dos investigadores e do sistema judiciário daquele lugar. Marie era uma vítima e foi tratada como criminosa, desacreditada, ameaçada, coagida. Foi processada!!! Correu risco de ser presa. Perdeu tudo o que tinha porque foi estuprada e a justiça não quis acreditar nela. O que foi recolhido da cena do crime, até mesmo o kit de estupro, foi descartado. E por causa da incompetência deles mais estupros aconteceram. Porque essa é uma realidade inegável: se eles tivessem feito o seu trabalho, se tantos erros grotescos não tivessem sido cometidos em relação ao caso de Marie, as chances de que o estuprador tivesse sido pego antes eram grandes. Todo o trabalho que as detetives do Colorado tiveram, deveria ter sido feito pelos de Washington.
Além do caso de Marie, acompanhamos também as vítimas posteriores, estupradas pelo mesmo monstro. Algumas delas ficaram com seus casos parados por não terem sido encontradas pistas que levassem até o criminoso, mas diferentemente de Marie, deram a sorte de encontrar policiais que seguiram o procedimento e mesmo quando se viram diante de dúvidas, não deixaram de cumprir seu trabalho. Por conta disso, quando as detetives Stacy Galbraith e Edna Hendershot se uniram para fazer todo o possível para conectar seus casos e rastrear outros casos semelhantes que as levassem até o estuprador, essas vítimas foram incluídas entre as mulheres estupradas por ele. Como o caso de Marie foi classificado como "falsa comunicação de crime" e os investigadores descartaram tudo como se estupro nenhum tivesse sido cometido, essas detetives só descobriram a existência dela ao final da investigação, por conta de arquivos encontrados na casa do estuprador. Se não fosse por isso, Marie nunca teria encontrado justiça. Seria para sempre considerada uma mentirosa. Nunca teria conseguido recuperar a sua vida.
"Mason havia confrontado uma mulher que foi atacada e ameaçada com uma faca, a convencido a voltar atrás em seu relato e a acusado de ter cometido um crime."
Os jornalistas que trabalharam para trazer a público esses casos, expondo todas as falhas policiais, bem como a dedicação de duas detetives que fizeram toda a diferença (juntamente com uma equipe maravilhosa), merecem todo nosso respeito e admiração. É um livro brilhante, uma pesquisa incrível, porque eles foram além, buscaram outros casos semelhantes aos de Marie, nos quais mulheres foram desacreditadas, processadas e até mesmo presas por comunicarem que foram estupradas e terem suas vozes caladas, condenadas no lugar dos agressores. São muitos os casos mencionados pelos jornalistas, muitas as situações, até mesmo envolvendo vítimas adolescentes que, como Marie, perderam muitíssimo ao serem tachadas como mentirosas. É angustiante demais ler sobre essas mulheres, saber que são pessoas reais, que passaram por toda essa dor, sendo agredidas pelo estuprador, pelo Estado e pela sociedade.
Os autores falam também do trabalho de muitas pessoas e ONGs para tornar mais humano o tratamento dado às vítimas de crimes sexuais, das conquistas que já foram obtidas e do longo caminho que ainda precisa ser percorrido. Há, inclusive, uma menção à minha querida Mariska Hargitay (atriz que interpreta Olivia Benson na série de TV Lei e Ordem - Unidade de Vítimas Especiais) e seu trabalho na defesa das vítimas de agressões sexuais na vida real. É um livro muito completo, construído com base num jornalismo investigativo muito bem feito, contando com entrevistas a muitos dos envolvidos no caso de Marie e das outras vítimas do mesmo estuprador. Há até o ponto de vista do estuprador, o que nos deixa ainda mais abalados. É um livro que merece muitos prêmios e que levarei como um dos meus preferidos de toda a vida.
Tudo que falei aqui ainda é pouco. É necessário ler o livro para compreender o quanto ele é importante. É UM LIVRO QUE DEVERIA SER LIDO POR TODOS.
Fazer esta resenha foi muito difícil. Uma das resenhas mais difíceis da minha vida. Existem várias outras coisas que gostaria de mencionar, mas ainda estou muito angustiada com tudo que li. Ainda me sinto muito mal. Imaginei que nem conseguiria escrever até aqui, mas precisava pelo menos tentar. Não teria sossego se não fizesse a resenha deste livro. Vocês precisam conhecê-lo. Precisam mesmo. Leiam! Simplesmente leiam este livro!
-> DLL 20: Um livro baseado em fatos
Atualizado em 18/03/2020, às 17h20min.
Eu tinha esquecido de mencionar que este livro inspirou a série da Netflix, intitulada Inacreditável. Ainda não assisti a série, então, não tenho como falar sobre ela. Não sei o quanto é fiel ao livro, mas pelos comentários de algumas pessoas parece que a série manteve sim a essência desta história real.
Gente, fiquei meio revoltada ao ler essa resenha porque me coloquei no lugar da personagem e no quanto deve ter sido desgastante para ela passar por tudo e não ter sequer o apoio legar. Quero ler, mas sei que tenho que estar em um momento ok para encarar.
ResponderExcluirBeijos
Oi Luna, tudo bem ?
ResponderExcluirPeço desculpas, mas não pude ler toda sua resenha, precisei parar ao saber do que se tratava. Fiquei com receio e insegurança de ser um gatilho . É um assunto muito complicado para mim.
Beijos
Oiii,
ResponderExcluirNossa Senhora! Sua resenha deixou meu coração palpitando e agoniado! Socorro kkkkkk Meu coração aperta quando eu vejo que este tipo de história é real, porque infelizmente o sistema judiciário da maioria dos países possui falhas imensas, fora que a cultura de culpar a vitima ainda ajuda na impunidade. Eu fiquei curiosa para conferir esta história, mas admito que estou com um pouco de receio de ficar perturbada demais com a leitura.
Beijinhos...
http://www.equipenerd.com.br/
Oi, Luna!
ResponderExcluirEu conheço esse caso por causa da série da Netflix, Inacreditável, que apesar de você não ter citado ou não aparecer na sinopse, acredito que seja baseado nesse livro, já que são praticamente iguais.
Eu assisti ela faz uns dois meses e fiquei chocada com a ineficiência da polícia. É inacreditável (como o título da série deixa explicito) e o pior é saber que ainda hoje isso acontece diariamente.
Como não sabia que existia um livro, fiquei surpresa e portanto, já anotei a dica.
Bjss
http://umolhardeestrangeiro.blogspot.com/2020/03/resenha-imperfeitos-livro-1.html
Olá, Carolina!
ExcluirEssa série da Netflix é sim baseada no livro. Eu estava tão angustiada por conta de tudo o que tinha lido no livro que acabei esquecendo de mencionar a série. Mas atualizei o post há alguns minutos, colocando essa informação.
Oi, Luna
ResponderExcluirEsse livro inspirou aquela série da Netflix? Esqueci o nome agora, mas a abordagem é muito parecida com o que conheço da história pelo que vi no trailer. Eu não leio não-ficção, mas acho que esta seria uma exceção. É um tema pesado e sem sombra a de dúvidas revoltante, mostrando como nós mulheres temos que provar que estamos falando a verdade em TODOS os momentos, mesmo naqueles de mais fragilidade. Bom saber que tem no Kindle Unlimited, vou anotar aqui no bloco de notas para não esquecer!
Beijos
- Tami
https://www.meuepilogo.com
Olá, Tamires!
ExcluirSim, o livro inspirou a série da Netflix intitulada Inacreditável. A angústia causada pela leitura do livro acabou me fazendo esquecer de mencionar, mas atualizei o post alguns minutos atrás, para constar essa informação.
É um livro que eu considero essencial, sabe? É realmente muito pesado, sobretudo por sabermos que aquilo tudo aconteceu e todos os danos provocados às vítimas pelo estuprador, pelo Estado e pela sociedade. É angustiante. Mas é um livro que serve de lição e de alerta, que nos torna mais conscientes e provoca empatia.
Olá Luna!!!
ResponderExcluirEu sei que o livro é necessário, mas temos também que pensar nos gatilhos que pessoas possam a vim sofrer e é bom sempre deixar o aviso.
Eu achei o livro bastante necessário, sim. E por isso quero conhecer, mas acho que será um livro que terei que ler pausadamente para poder digerir o que estarei lendo.
É difícil ver que nossa sociedade continua muito machista e que é mais fácil achar que uma mulher está mentindo do que falando a verdade.
Parabéns por trazer um livro com temática tão forte.
lereliterario.blogspot.com
Oie, se nao me engano eu vi a série desse livro e fiquei destroçada, só de pensar no que essa mulher passou, na dor que é ser desacreditada depois de algo tão pesado... Uma leitura que realmente é angustiante pra qualquer um, principalmente para nós mulheres.
ResponderExcluirOie, tudo bem? Eu adoro livros baseados em fatos reais, e nunca havia ouvido falar nesse. Mas confesso que mexem demais comigo, muitas vezes eu tenho dificuldades de falar sobre livros ficcionais sobre o tema, imagino um sobre fatos reais. É muito pesado mesmo. Eu adorei a dica,mas vou ter que engavetá-la no momento. Estamos numa fase tão difícil que só quero leituras bobinhas... Mas espero que quando passarmos por tudo isso possa voltar a ler livros do gênero.
ResponderExcluir;)
Nelmaliana Oliveira
Profissão: Leitora
Olá, tudo bem? Não conhecia a obra, mas sua resenha está tão completa que me deixou mega curiosa para me aventurar nas páginas, vou ver se ainda está no KU e vou alugar para ler
ResponderExcluirOi,Luna!
ResponderExcluirLivros perturbadores como este, com gatilhos e tudo, eu geralmente evito. Mas me pareceu ser uma leitura necessária, em respeito às vítimas. Sua resenha me passou sentimentos como raiva, tristeza, angústia... eu pretendo ler e sei que ficarei com o coração na mão da primeira à última página.
bjos
Lucy - Por essas páginas
Oi Luna, tudo bem?
ResponderExcluirComo eu comentei contigo lá no Face, eu não consigo imaginar como duas pessoas que se dizem policiais conseguiram fazer uma caca (para não usar uma palavra bem mais feia) que poderia até ter MATADO alguém no processo e ainda um deles, como tu me comentou, não ter tido a decência de reconhecer a culpa e ainda ter a cara de pau de pedir cachê aos realizadores. Essa história como um todo é tão lotada de absurdos que eu nem consigo contar! Tomara que a Marie tenha conseguido seguir a vida dela e se afastado dessa gente que não quis acreditar nela.
Um beijo de fogo e gelo da Lady Trotsky...
http://www.osvampirosportenhos.com.br