20 de outubro de 2017

Negrinha - Monteiro Lobato (conto)

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Negrinha é um livro de contos realistas lançado em 1920, com personagens que representam a população brasileira das décadas iniciais do século XX. Nele Lobato revela uma terra onde o poder é exercido arbitrariamente pelos coronéis e expõe a mentalidade escravocrata que persiste décadas depois da Abolição. Estão retratados em suas páginas tipos tão diversos quanto um fazendeiro falido, o jardineiro que faz poesia das flores, a viúva cruel, uma criança negra maltratada e o gramático ranzinza.



Palavras de uma leitora...



- Se você ainda não leu este conto e não é fã de spoiler, pule esta resenha! Porque, com toda certeza do mundo, terá spoiler. Impossível falar deste conto sem explodir. 

Há algum tempo já, eu desejava ler uma história do Monteiro Lobato. Cresci assistindo O Sítio do Picapau Amarelo. Me encantava a turminha formada pela Narizinho, o Pedrinho e a traquinas Boneca Emília. Tia Nastácia, Saci Pererê, A Cuca, o Pesadelo... todos eles ficaram em minha memória. Sinto saudades. E ainda hoje paro para rever alguns episódios quando ligo a TV e passo por algum canal que exibe reprises. Que época boa aquela em que eu me perdia na inocência de acompanhar as aventuras e desventuras dos personagens! Ah, se pudesse voltar! Suspiros...

Quando vi a resenha da Isa no canal Ler Antes de Morrer sobre o conto Negrinha, o nome do autor me chamou a atenção. Não tencionava começar minha leitura do Monteiro por este livro de contos, afinal de contas, seu conteúdo é adulto e polêmico. Nada parecido com O Sítio do Picapau Amarelo. Porém, uma feira de livros ficou durante o mês de setembro na cidade em que estudo. E foi quase por acaso que esbarrei neste livro. 

Não tinha a menor intenção de comprá-lo. Estava atrasada para a minha aula e já tinha comprado o livro que queria. Mas o livro Negrinha estava tão lindo, embalado, novinho, novinho que não pude resistir.rs Sobretudo quando vi que era do selo Biblioteca Azul, da editora Globo. Desde que adquiri minha edição de As Relações Perigosas que tenho toda uma queda por esta editora. A editora capricha muito nos livros. São deliciosos ao toque, com capas bem feitas, páginas suaves e que não cansam os olhos. Enfim... Amo! Não pude desperdiçar a minha oportunidade de trazer o livro para casa. 

- Só que a resenha da Isa não me preparou para o que senti ao ler este conto. Sério, gente! Eu tremia durante a leitura. O livro não parava de balançar em minhas mãos. E quando finalmente terminei de ler a história desta menininha de sete anos, um nó insuportável sufocou minha garganta. Pode ser um conto apenas. Ficção. Mas não dá para evitar a certeza de que ele retrata a situação de diversas crianças que sofreram durante a escravidão, o período que imediatamente se seguiu após a Abolição da Escravatura e que até mesmo nos dias atuais seguem sofrendo diversos tipos de tortura. E isso é terrível. É insuportável ler uma história tão visceral, tão crua e realista. Não me fez nenhum bem. 

"No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer..."

- Este trecho dói em você? Pois em mim, sim. O conto já começa nos provocando choque e angústia. Negrinha (não sei o verdadeiro nome da menina, se era este ou não) era uma criança de sete anos, que teve a má sorte de nascer numa época em que pessoas eram escravas das outras pelo simples fato de terem a pele escura. Porque o ser humano era um bicho pior do que é hoje em dia e se divertia fazendo de outros seres humanos seus escravos. Ela nasceu pouco antes do fim da escravatura, mas ficou órfã aos quatro anos de idade e isso a deixou aos "cuidados" da "boa e caridosa" Dona Inácia, a mulher que era dona de sua mãe e que por ter um "coração tão bondoso" decidiu criar a pobre criança órfã. 

Excelente mulher, sem sombra de dúvidas! Tão boa que me pergunto se não era parente do próprio diabo. A víbora, desgraçada, filha de chocadeira e tão maldita quanto todas as pragas que existem (respira fundo, Luna!), achava uma afronta o fim da escravidão. Para ela aquilo era uma besteira, um absurdo e se ressentia por não poder mais ter escravos e livrar-se do tédio às custas deles. Como lhe dava saudades da época em que podia torturar livremente seus escravos, dar as surras que lhe aliviavam a alma... Em síntese: fazer com eles o que bem entendesse, o que sentisse vontade de fazer no momento. E é óbvio que não foi por bondade alguma que ela decidiu ficar com a menina. 

"O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam neles os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo."

- A principal diversão da filha da p. que se considerava uma pessoa virtuosa e caridosa, era torturar a criança. Ela não precisava de nenhum motivo, inventava o que queria. Sentia verdadeiro prazer em machucar a menina, deixar marcas em seu corpo, impedi-la de sorrir e ser criança, de brincar, de sonhar. Sufocava sua alma. E quando a repetição dos mesmos castigos lhe cansava, inventava coisas piores, como a cena na qual ela colocou um ovo na água fervente e quando ele ficou bem quente, colocou na boca da menina e depois tampou, para impedi-la de cuspir, para que ela sentisse por completo toda a dor que aquela crueldade lhe provocaria. E durante todo o tempo em que a criança sofria, ela sentia prazer! Não nego que senti vontade de matar essa desgraçada! Maldita, mil vezes maldita! 

"O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis."

- É horrível demais tudo o que essa criança passa, gente. Não dá para aguentar algo assim. Senti meu coração se partir por ela e uma fúria enorme esquentar meu sangue. Uma criança! Apenas uma criança que nunca soube o que era ser amada, protegida. Que necessitava de carinho, proteção, de sonhos, de infância. Mas que teve tudo roubado e destruído por causa da maldade de outro ser humano. Não me venham dizer que aquela mulher "era uma pessoa de sua época", com uma mentalidade "de sua época". Isso é uma desculpa esfarrapada e estúpida para a crueldade. Eu não aceito isso. Desde o início dos tempos sempre existiu a maldade. Bem como a bondade. As pessoas simplesmente se aproveitavam e seguem se aproveitando de costumes desumanos para deixarem fluir o que de pior tem nelas. Optam pela maldade e inventam desculpas para se justificarem. A víbora que torturou a menina neste conto merecia era queimar no inferno. Mas antes comer o pão que o diabo amassou e ter a morte mais lenta e dolorosa possível. Ninguém pode fazer algo assim com uma criança e depois não pagar de algum modo. Eu acredito que a Vida tem sua própria justiça. E que esse tipo de lixo paga, ainda que não vejamos, que jamais saibamos, esse tipo de gente cruel tem de volta o mal que causou. 

"Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que aventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E, muito sem jeito, como quem pega o Senhor Menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta."

- Transcrevendo este trecho, não consegui evitar sentir de novo a dor que me invadiu quando o li pela primeira vez. A alegria inocente da menina que nunca antes tinha visto uma boneca. Que nunca pôde brincar, que jamais teve um brinquedo sequer. E ao ver aquelas crianças felizes, mimadas e protegidas como ela também tinha o direito de ser, ela ficou completamente encantada e confusa também. Não entendia por que as outras crianças podiam correr e brincar e ela não. E quando viu a boneca... Foi um sonho. Pegou a boneca nos braços com suavidade, querendo que aquele momento durasse para sempre. E ali também começou sua morte. 

- As meninas que emprestaram a boneca para ela eram sobrinhas da miserável que a torturava. Durante aquelas férias, elas ficaram hospedadas na casa e através delas Negrinha conheceu uma realidade bem diferente da sua e entendeu que existia uma vida distinta. Que as coisas não eram assim em todos os lugares. Com isso, seus olhos se abriram e parte de sua inocência ficou para trás. Compreendeu a maldade. E isso... isso a matou. A depressão que se seguiu quando as meninas foram embora, levando a boneca e a vida que ela também gostaria de ter, a matou. Pouco tempo depois, ela faleceu. Sem que ninguém chorasse por ela. Sem que ninguém se recordasse dela com amor e tristeza.

- Pelo que lembro do que a Isa disse na resenha dela sobre o conto, o Monteiro Lobato é visto por muitos como um autor racista. Não conheço a história dele. Tudo o que eu sabia sobre o autor era que ele era o criador do Sítio do Picapau Amarelo. Não pesquisei sobre a vida dele depois de assistir a resenha. Não pesquisei antes de ler o conto e nem depois. Tenha ele sido racista ou não, impossível negar que o conto Negrinha é uma crítica crua e direta ao racismo. Fica difícil acreditar que um autor racista escreveria uma história tão real e que mostrasse um desprezo tão grande pela sociedade hipócrita e racista da época. Monteiro descreve com extrema ironia a vilã da história, a grande dama, a "virtuosa cristã" que torturava uma menina só por causa da cor da pele da criança. Só um cego não enxergaria que todo suposto elogio que ele faz à desgraçada da Dona Inácia, na verdade é uma ofensa. Todos os elogios ao monstro em forma de gente na verdade eram puro desprezo, repulsa. A triste e nojenta ironia que existia no fato de uma cristã, uma pessoa que se considerava temente a Deus, tratar de maneira tão desumana uma criança. Ele ataca a "bondosa" senhora e não a menina. A mostra como o monstro que ela era. Assim como nos mostra que a criança era uma vítima, alguém que teve a vida destruída porque quem tinha o poder quis. 

- Ainda não li os demais contos deste livro. Não faço ideia de quando os lerei. Se os demais contos seguirem o exemplo deste, terei que me preparar muito antes de lê-los. Porque um conto como Negrinha é muito forte. 

Leitora apaixonada por romances de época, clássicos e thrillers. Mãe da minha eterna princesa Luana e dos meus príncipes Celestino, Felipe e Damon (gatinhos filhos do coração). Filha carinhosa. Irmã dedicada. Amiga para todas as horas. Acredita em Deus. E no poder do amor.

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